segunda-feira, 19 de julho de 2010

Cabisbaixez

"O micro-conto é uma sequência de pensamentos organizados e sintetizados em breve linhas."

Rúben De Brito

          Reparo, através de uma gótica porta, no corpo cabisbaixo de um senhor grisalho. Pensar-lhe o esboço de ideias é-me impossível de realização com certeza. Todo o ser é complexo, não porque seja concebido em matéria orgânica e inorgânica, mas antes pelos actos de um alvará rubricado numa distância apartada onde tudo já foi feito.

          A Realidade está sempre antes de nós, e antes desta uma espécie de pré-Realidade - impera a pureza da essência de cada corpúsculo existente no que é concebivelmente pensado, mas inconcebivelmente palpável. Atingi contacto com esta forma de certeza onde só os sensíveis conseguem chegar com adesão absoluta e voluntária do espírito do facto, se verdadeiro ou não verdadeiro, se apenas atómico ou se não atómico. O Homem está em toda a Realidade, no que está antes e depois.

          O homem, cabisbaixo grisalho e alto, não mantém conversação em qualquer género; se falar, quiçá, são banalidades cuja natureza permanece tão irrisória que o seu pensamento escapa-se-me pelo vazio entre o Consciente e o Inconsciente, que nunca é senão a Intolerância dos mais sábios perante aqueles que pouco conhecem da Vida - desde conceitos básicos a fórmulas quânticas.

          O homem, cabisbaixo grisalho alto e de corpo esquivo, forma juízos pois é a sua chave d'ouro para uma compreensão trivial de si, desprovida de qualquer desejo e ambição, visível de quietude naquele local; seu destino marcado sobre a face cansada de trabalho e tabaco. Os braços com musculos relaxados, dissolutos de movimentos, parece-me, devido ao tédio quotidiano, e a boca com pele franzida de tanto mexer os lábios de nervosismos.

          O crepúsculo cessa-lhe o ciclo de um dia em que, de igual modo, tantos micro-organismos usufruiram de escassos segundos de vida e, ele, tão velho cansado e cabisbaixo de infortúnio gozou demais um momento de indiferença pura com um abraço de desgraça bastante para o seu corpo tão cabisbaixo ao longe, tão corcovado sem alma. Tombado de morte.

Rúben De Brito

2 comentários:

  1. Encontrei um texto que vai de encontro àquilo que eu penso e que ninguém concorda.

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  2. Sim, referia-me ao teu texto. O homem de cabelo grisalho fala de banalidades, e atingiu um estatuto que lhe permite falar de banalidades sem que argumentem contra ele. O homem de cabelo grisalho é sábio. De facto ele sabe muita coisa, é culto, tem o dom de saber falar e de saber do que está a falar. Mas é intolerante, e por isso mesmo, com o passar do tempo, aquilo que fala já nem corresponde à verdade. De que lhe adianta ser sábio ? De que lhe adianta falar e saber do que fala, se se pronuncia sobre o que não é real ? No fundo, são os homens de cabelo grisalho (não querendo generalizar, mas já o fazendo), que representam a maior falta de conhecimento da vida ao contrário do que aparentam ser, a maior fonte de conhecimento acerca da vida. Ele forma juízos, como referiste, porque não conhece a relatividade, é intolerável, e é sábio, estatuto que lhe permite formar juízos de valor.
    O homem de cabelo grisalho morre sem viver, morre sem saber o que é a felicidade. É intolerável, não aceita outras formas de felicidade que não a sua. Não chega a morrer sequer, pois nunca viveu.

    Desculpa o tamanho do comentário.
    Abraço.

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